segunda-feira, 16 de julho de 2018

MEU CONTO:

Escultores de sombras



Com os braços apoiados na sacada do apartamento, observo um mar imenso de luzes que cintilam ao meu redor. Olhando para tudo aquilo, fica difícil imaginar como era o mundo antes do advento da eletricidade. Certa feita, eu li, em algum lugar qualquer, que a maior invenção do ser humano teria sido a energia elétrica. É bem verdade que atualmente existem coisas mais complexas, até mais extraordinárias, mas eu custo a imaginar outra criação mais imprescindível nos dias de hoje.

O passeio visual prosseguiu sua navegação até que as meninas dos olhos, curiosas, se detiveram por instantes em uma casa totalmente às escuras, sabe-se lá o motivo. Minhas divagações luminosas interromperam por instantes, me remetendo à minha meninice.

Lembro-me que naquela época, a falta de energia era de certa forma comum onde morava, especialmente quando a chuva mostrava-se mais vigorosa. Bastava a família estar acomodada na sala assistindo à TV que, de repente, a escuridão invadia o ambiente sem ser convidada. Era inevitável deixar escapar aquele “ah!”, até hoje não sei ao certo se de decepção ou surpresa. Quando isso acontecia durante o dia, a pouca luminosidade natural não causava maiores dificuldades, mas, com a chegada da noite, meus pais precisavam recorrer a outras estratégias.

As crianças se juntavam principalmente próximo à mãe querendo buscar abrigo, já que a escuridão trazia consigo uma atmosfera de insegurança e só um adulto era capaz de oferecer guarida para essa situação. Meu pai levantava-se e tratava de apanhar uma vela no lugar de costume e acendê-la com o estalar de um fósforo, que repousava na caixa estrategicamente deixada ao lado do fogão. A vela era colocada sobre a mesa e, logo depois que a chama se estabilizava sobre o pavio, a luz rasgava a penumbra e se espargia pelo ambiente, até que o brilho repousasse nos olhares que se debruçavam em volta do móvel. Era essa uma das formas de se desencadear outro tipo especial de energia, que eu chamaria de “energia familiar”.

A vela pálida devidamente posicionada sobre a mesa abrigava dentro si um barbante igualmente esbranquiçado, que perpassava todo seu interior até atingir o topo, de onde saia por milímetros para agarrar a chama fulgurante. Muito embora fosse referência, a vela não era o principal ponto a ser observado. As atenções todas estavam voltadas muito mais às sombras que nos rodeavam do que propriamente a claridade do pequeno círio. E assim, contrariando todas as leis do universo, presenciávamos um desses raros momentos em que a luz se rende brandamente à escuridão.

Então, para preencher o tempo, ora meu pai, ora minha mãe, juntavam as mãos próximas à vela, numa atitude muito similar a de alguém que iniciaria uma oração religiosa, e começavam a preencher de sombras a parede vazia, esculpindo figuras simplesmente encantadoras. Muito embora não estivessem rezando nada de convencional, vejo hoje que esses momentos não deixavam de ter conotação de sagrado.

No início, alguns objetos se apresentavam com a clara intenção de chamar a atenção dos presentes, que tratavam de fixar os olhares quase que incrédulos nas figuras, sem se darem conta de que os lábios acompanhavam o regalo dos olhos.

Mas quando os animais entravam em cena é que a festa ficava completa e aumentava ainda mais o interesse, ficando quase impossível de conter os risos que escapavam espontaneamente. O peixe punha-se a nadar no lago imaginário, para em seguida o cisne deslizar bailando sobre as águas claras. O jacaré abocanhava a quietude e dava lugar a comentários inesquecíveis. O elefante balançava a tromba e, numa referência a sua memória prodigiosa, vejo que é capaz de trazer à tona réstias do passado.

As mãos paternais daqueles artistas mostravam uma habilidade incomum naquelas horas, movidas pela experiência de quem viveu uma difícil infância, sob a luz de lamparinas. Para esculpir as sombras, a sensibilidade era a ferramenta que escavava aquele painel de reboco, que suportava a nostalgia ali estampada. Numa atitude muito mais de admiração que imitação, tentávamos repetir com nossas mãozinhas seus movimentos, mas o tempo ainda não nos tinha dotado de igual destreza. Contudo, a falta de sincronia comum da idade era motivo muito mais de risos que propriamente de decepção.

Devido ao clima hospitaleiro, o vento se espremia pelo vitrô, fazendo-se de penetra para assistir tudo aquilo. Suas rajadas perdiam um pouco da força ao transitarem pelo ambiente e, em forma de brisa, aproveitavam a oportunidade para convidar a chama para dançar. Naquele instante, o suave balanço do fogo despertava os pássaros “empoleirados” num canto qualquer da parede, que moviam-se como que alçando voo à nossa imaginação. O burro mexia as orelhas e o cão abria a boca e, de tão cansado, colocava a língua de fora. Apesar da quietude, era possível de certa forma até mesmo ouvir o latido do tal cachorro que, vez por outra ainda ecoa na minha lembrança.

A vela quieta, encimada à mesa, consumia-se aos poucos diante da grandiosidade do momento. Quando a eletricidade se demorava a dar o ar da graça, ela ia se apequenando sucessivamente a tal ponto, que a cera derretia-se em languidez pela vigília daquelas ocasiões mágicas, necessitando de mais outra para prosseguimento da empreitada. Então, mesmo relutando em sair de cena, a chama saltava para uma substituta sobressalente, que altivamente se posicionava no lugar de sua antecessora, seguindo claramente o mesmo roteiro.
  
Repentinamente, da mesma forma com que a energia elétrica se fora, ela voltava. Assim, as luzes tornavam a se acender, acompanhadas de outro “ah!”, dessa vez certamente de desapontamento. Então, os olhos começavam a contrair repetidas vezes, até acostumarem-se forçosamente mais uma vez à claridade. A invasão de luz, porém, culminava por sufocar a energia predominante até então, quando todos viam-se obrigados a direcionar seu olhar novamente para o objeto de 20 polegadas, ou, quando do adiantado das horas, caminhavam para as camas posicionadas no cômodo que seria invadido pela escuridão, para que pudéssemos repousar embalados pelos sonhos que se sucederiam.
  
Ao mesmo tempo, um dos adultos curvava-se próximo à vela e dando a boca o formato de um beijo, parecia estar sussurrando ao objeto que já era momento de adormecer também, depois cumprir sua missão. Normalmente a chama resistia ao primeiro sopro, mas acabava por sucumbir diante do vento mais intenso. Então, o pavio agora desnudo, exprimia seu aceno através de um fio de fumaça em zigue-zague retorcido.
   
É incrível como águas passadas conseguem mover as turbinas do tempo e são capazes de gerar esse tipo de energia e, apesar de seguirem seu curso natural, vez por outra terminam por desembocar num compartimento qualquer da lembrança, lavando, assim, por completo a alma de tanta saudade.

Quisera eu ter o dom divino da criação para que, quando farto de luzes artificiais, assim quando bem desejasse, numa atitude feito Gênesis às avessas, pudesse ordenar: “faça-se a escuridão”. E, quando ela se estabelecesse, eu, munido de uma vela, uma caixa de quarenta palitos e incontáveis lembranças, me inspiraria nas mãos iluminadas de meus pais, para esculpir nas paredes que me rodeia, as sombras que insistem em dar lume às minhas recordações.

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AUTOR: Paulo Cesar Paschoalini
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 < CURRÍCULO LITERÁRIO E PREMIAÇÕES > 

COMENTÁRIO:
Este texto consta do original do livro Paredes e tons” (título provisório), que contém 17 contos de minha autoria, aguardando parceria de um patrocinador para edição/publicação.
PREMIAÇÕES E SELEÇÕES:
- Menção Honrosa no "22º Concurso de Contos Paulo Leminski", da cidade de Toledo-PR, certame de 2011. Foi um dos 13 textos selecionados para integrar a "5ª Coletânea de Contos" relativa ao evento, dentre as 703 inscrições recebidas.
- Menção Honrosa no "XII Concurso Nacional de Contos" - Prêmio Inácio de Loyola Brandão, de 2011, de Araraquara-SP. Um dos 12 textos selecionados dentre 568 inscritos, consta das páginas 99 a 103 da Coletânea editada no ano de 2012 pela Secretaria Municipal da Cultura/FUNDART, em parceria com a UNESP - Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho".
- Recebeu a 2ª Menção Honrosa no "XXXVIII Concurso Literário Felippe D'Oliveira - Edição 2015", da cidade de Santa Maria-RS, sendo um dos 7 selecionados na modalidade "Conto", categoria Nacional, dentre 257 contos apresentados, nesse certame que teve a participação de candidatos de 15 estados do Brasil, além de Japão, Itália e Inglaterra.
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