Um
canto de liberdade
Os
primeiros raios de sol começaram a iluminar o ninho que construí sobre a velha
figueira, onde eu dormia, e me fez despertar. Assim que me pus em pé, agitei as
asas e toda a plumagem amarelada para me espreguiçar melhor. Tudo indicava que
era mais um dia normal ali naquele bosque. Parecia que seria novamente uma
sucessão de horas e mais horas voando feliz pelo reino da Terra.
Voei,
então, até o regato que contornava algumas árvores e caminhava pela mata,
desviando-se das pedras que permaneciam estáticas em seu leito. Beberiquei
daquela água cristalina para saciar a minha sede matinal. Em seguida, saí para
voar através daquele verde que a natureza plantou à minha volta e, enquanto
batia as asas, eu engrossava o coral de cantoria que a passarada entoava toda a
vez que o dia amanhecia.
Era
maravilhoso ter todo o tempo do mundo para brincar com o vento e depois
saltitar de galho em galho, de árvore em árvore, fazer voos rasantes ao solo,
ou subir alto em direção ao azul do céu salpicado de nuvens
esbranquiçadas. A alegria irradiava de um horizonte ao outro e era possível
sentir a tranquilidade que se espalhava por todo aquele “bosque encantado”.
Apesar
de viver feliz naquele lugar, eu tinha muita curiosidade em saber o que
acontecia além dos limites da mata. Mas eu sempre fui desencorajado pelas
andorinhas a ir muito longe. Elas contavam que, além do bosque, existia uma
cidade grande onde vivia o ser humano, um animal estranho, incapaz de entender
e respeitar os outros animais.
Contavam,
inclusive, que os homens chegavam a aprisionar e a matar algumas espécies só
por prazer. As andorinhas disseram, também, que os humanos eram capazes até de
matar uns aos outros. Era difícil de acreditar nessas histórias, pois já
cheguei a ver poucas vezes alguns adultos em companhia de crianças, andando
pelas trilhas da mata, e eles não me pareciam agressivos.
De
repente, um alvoroço tomou conta do bosque. Era um sinal de alerta para todos
se cuidarem, pois o “bicho homem” se aproximava. Voei rapidamente até o ninho e
permaneci lá imóvel e em
silêncio. Eu pude ouvir as suas vozes quando passaram próximo
de onde eu estava e seguiram em frente. Arrisquei espiar e vi que pararam perto
dali por alguns instantes e logo mais foram embora. Assim que o perigo passou,
todos os animais deixaram o seu abrigo e a vida voltou ao normal por toda a
mata.
Só
por curiosidade, sobrevoei o lugar onde eles permaneceram por algum tempo e vi
alguns objetos estranhos que deixaram por ali. Como eram esquecidas essas
pessoas! Foram embora e não se lembraram de levar tudo aquilo que trouxeram. Eu
sei que os outros pássaros tinham me alertado para não me aproximar dos
humanos, mas eu queria saber algo mais sobre eles. Já que eu não podia ir até a
cidade, não deixaria de perder a oportunidade de ver de perto alguma coisa
feita por eles. Além do mais, tudo que estava ali parecia inofensivo. Então, eu
cheguei mais perto e observei os detalhes dos materiais estranhos que eles
produziam.
Era
ao mesmo tempo curioso e fascinante ver o que a mão humana é capaz de fazer.
Objetos de madeira e arame colocados de forma inusitada, dando aos materiais um
aspecto interessante. Notei, também, que os homens tinham deixado para trás um pouco
de comida perto dos objetos. Como era hora do almoço, não poderia deixar passar
todo aquele banquete que estava à minha frente, com quitutes que eu jamais
havia visto e dificilmente teria igual oportunidade novamente. Fui dando uma
bicada aqui, outra ali e tudo estava uma delícia. Então saltei na direção de
uma caixa de pedaços de madeira com fios de arame, com bastante alimento dentro
dela.
Porém,
para a minha surpresa, assim que me ajeitei no poleiro, uma tampa de arame se
fechou sobre mim e eu me vi prisioneiro. Comecei a piar, aos gritos, mas os
poucos que se aproximavam não conseguiram me tirar de lá. Naquele momento
compreendi como era assustador ver o que a mão humana é realmente capaz de
fazer.
Permaneci
preso por algumas horas até que os humanos voltaram. Ficaram felizes ao me
verem no alçapão onde eu estava e me levaram dali em direção ao povoado. Aí,
finalmente eu conheci a tal cidade. Um emaranhado de pedras sobrepostas,
repleta de seres humanos apressados e preocupados em não perder tempo. No ar esfumaçado,
um cheiro desagradável que em nada lembrava o perfume que as flores que
existiam na mata exalavam. O homem é um animal muito estranho, pois onde ele
mora quase não existe árvores por perto e é um absurdo ver que o pouco de verde
que ainda resta no lugar ele mesmo se encarrega de ir destruindo.
Hoje
eu estou preso já há algum tempo numa gaiola. Desde que fui trazido para cá, eu
sinto muito medo quando uma pessoa chega perto de mim. Aos poucos eu passei a
entender o que os humanos falam, muito embora eles não me entendem nem um
pouco. Toda vez que alguém diferente me vê, sempre pergunta se eu sou um
canário do reino ou da terra. Que diferença isso faz já que o meu reino é toda
a Terra? ... Ou pelo menos era.
Quando
eu expresso algum som, alguém se aproxima de mim e sorri dizendo que eu estou
cantando alegremente. Como pode um ser que se diz inteligente achar que alguém
que está preso é capaz de cantar feliz? Como pode alguém, que luta tanto por
sua própria liberdade, fazer tanto para tirar a liberdade de outro ser vivo, só
porque tem uma plumagem de coloração atraente e emite um som interessante?
Seria o mesmo que um ser humano prendesse outro de sua espécie, simplesmente
por ele se vestir bem e ter uma linda voz. Isso seria um absurdo, assim como
não tem nenhum cabimento eu estar preso!
Os
homens não percebem que o som que eu emito não é um canto. Algumas vezes é um
lamento e outras, um gemido de dor. Porém, na maioria das vezes, o meu “cantar”
é um grito, um clamor por liberdade. Nesses sons que expresso eu tento
manifestar que muitas vezes eu sinto fome e frio. Mas o que mais me machuca é a
solidão e, principalmente, a tristeza por ter sido feito prisioneiro apenas
porque a natureza me fez encantador e indefeso.
Todos
os dias eu olho em direção ao “bosque encantado” e às vezes choro por saber que
nunca mais vou voltar a ver aquele lugar. E sempre que eu vejo o topo da copa
das árvores que lá existem, que estão cada vez mais distantes de mim, eu me
pergunto:
- Que mal eu fiz ao ser humano para ele me condenar à prisão perpétua?!
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AUTOR:
Paulo Cesar Paschoalini
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COMENTÁRIO:
Este texto consta do original do livro “Paredes e tons” (título provisório), que contém 17 contos de minha autoria, aguardando patrocínio de um parceiro para edição/publicação.
Ele foi escrito há muito tempo. Lá se vão mais de 15 anos... Quando
eu o escrevi, fiz com a intenção de ser dirigido ao público infanto-juvenil.
De certa forma, a linguagem é apropriada a essa faixa etária, mas entendo que a
mensagem contida é para “crianças de todas as idades”. Cada vez que o leio,
sinto que nós adultos passamos a compreender ainda mais a amplitude e o valor da palavra “liberdade”, uma vez que as “armadilhas” dos padrões sociais vão nos tirando paulatinamente. Podemos constatar, também, que o
nosso “bosque encantado” vai ficando mais distante daquilo que imaginávamos.
Triste paralelo esse traçado em comparação à personagem, que, ainda com
desfecho mais trágico, tem como destino a “prisão perpétua”, por algo que nunca
fez por merecer. Penso que vale como reflexão.
PREMIAÇÕES:
– Menção
Especial no “III Concurso Grandes Nomes da Nova Literatura Brasileira”, da
cidade de São Paulo-SP. Concurso de 2002 e publicado por Phoenix Editora no encarte do ano
seguinte.
–
Selecionado no Concurso “Banco de Talentos 2003” e editado pela
Febraban em livro de coletâneas relativo ao evento.
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